ANOS DE FERVEÇÃO

Com homens seminus em suas capas,
Babado afrontava o conservadorismo

O segredo do sucesso do jornal estava em trazer visibilidade à comunidade LGBT+, por meio de humor e sensualidade

27 nov. 2023

Um jornal mensal gay que estampava homens seminus em suas capas, desafiando a população conservadora de Campinas. Assim se apresentava o Babado desde suas primeiras edições. O segredo do sucesso da publicação LGBT+ se escondia na habilidade da equipe editorial de fazer com que seus leitores se vissem representados nas páginas do periódico de forma sensual, bonita e alegre. O tom bem-humorado da publicação se manifestava até nos textos focados em preconceitos e saúde, ainda que por vezes o jornal também tivesse de falar de modo duro sobre as violências sofridas pela comunidade.

Esse tom descontraído vinha da rotina de produção do veículo, que era feita sem remuneração e de maneira amadora. Segundo Regina Bottari, 60, a primeira mulher a escrever no jornal, as reuniões de pauta para definir o conteúdo mensal do periódico aconteciam uma vez por semana, nas madrugadas, em um apartamento cedido por Fernando Tambolato, financiador do periódico e cofundador do grupo Expressão, coletivo que criou o jornal, morto em 2017.

“Começava assim: ‘Ah, hoje vai ter reunião de pauta’. ‘Que horas?’. ‘Ah, às 20h, que é o horário que todo mundo pode’. Aí, o povo começava a chegar às 21h, e ia madrugada adentro. A gente nem percebia que virava a noite. A dinâmica era muito divertida, porque a gente gostava muito do que a gente fazia. O Babado nunca foi um trabalho”, conta Regina.

“Era muito engraçado. Era um apartamento que tinha na Rua Doutor Quirino, bem no centro de Campinas. E lá era a redação. Então, era meio que uma república. Todo mundo meio que parava ali para bater um papo, para tomar um café. E eu lembro que o telefone ficava na sala, e as contas vinham altíssimas de tanto que ligavam”, conta Eduardo Gregori, 54. O jornalista começou no periódico como estagiário, após conhecer a publicação por meio de um professor, na PUC-Campinas.

O Babado só foi publicar os nomes das pessoas que exerciam os cargos na produção a partir de sua terceira publicação, em novembro de 1996. Desde aquela época, Jairo Silva, parceiro de Fernando, era o editor-chefe do jornal. Ele dava o tom das pautas, que eram bastante voltadas para a noite campineira e para a sexualidade. Os outros nomes que assumiram a direção do veículo foram Eduardo Gregori, o único jornalista por formação do grupo, e Regina Bottari, mas apenas nos meses finais do jornal. Ao longo do tempo, o expediente do periódico trouxe diversos colaboradores, mas parte deles não permaneceu no veículo. Os ex-membros entrevistados nesta reportagem também não se lembram dos nomes de outros redatores.

As capas do Babado eram sempre muito elogiadas pelos leitores, e, para a maioria de seus ex-membros, eram o destaque da publicação. “Era aquele formato tablóide. Ele era muito colorido, muito expressivo”, afirma Paulo Mariante, 60. Quem ficava responsável pelo design era o publicitário Micael Jacques, já morto.

Porém, segundo Julio Teodoro, 31, que estudou as capas do jornal em seu mestrado, não eram apenas as cores que saltavam aos olhos: os homens seminus também eram grande parte do que se destacava. “Eu acho que a capa é o elemento principal de um periódico, de um material gráfico nesse formato. Eram capas extremamente provocativas, e isso era muito bom, porque atraía a atenção das pessoas.”

A publicação era impressa em uma gráfica localizada na cidade de Americana, também no inteior de São Paulo, mas, segundo Regina, a equipe não cumpria o cronograma de entrega dos arquivos. “Sempre atrasava. Era uma loucura, mas saía.”

Confira abaixo a 11ª edição de 1997 do Babado na íntegra ou acesse o acervo da reportagem obtido no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp para navegar por outros exemplares:
Na capa da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, um homem branco passa as mãos em seus cabelos molhados enquanto olha para baixo. Além disso, a página estampa manchetes, o número do exemplar e o nome do jornal, este em letras maiúsculas verdes no topo da imagem.
Na primeira página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, os leitores encontram um editorial, o expediente do periódico com os nomes de quem participou da produção, e um texto sobre a importância de usar camisinha.
Na segunda página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, é possível ver um anúncio de inauguração de uma boate. A imagem é composta por um homem magro com asas de anjo, além do endereçõ e data de abertura do estabelecimento.
Na terceira página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, encontra-se a coluna Espaço Cult, que abordava temas culturais.
Na quarta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, estão a coluna Papo Zen e diversos anúncios de boates e sexshops.
Na quinta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, o jornal traz a coluna Veneno by Matahari, além de anúncios de uma sauna com homens nus e de um estúdio de tatuagem.
Na sexta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, há a coluna de cartas da personagem Neide Basfond, criada por Jairo Silva, ex-editor do Babado. Juntamente, ocupam a página um anúncio de uma boate e de um estúdio de tatuagem e piercings.
Na sétima página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, encontra-se a coluna de namoro Contatos Imediatos, em que o jornal publicava informações sobre os leitores que gostariam de encontrar um parceiro, acompanhada de uma foto de um homem sorrindo com um cachorro grande preto. Além disso, há dois anúncios de saunas.
Na oitava página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, é possível encontrar a continuição da coluna Contatos Imediatos, juntamente a outros anúncios de cinema, saunas e boates.
Na nona página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, encontra-se a primeira parte da coluna Ferveção Queer, criada por Jairo Silva, ex-editor do jornal, responsável por cobrir as festas da cena gay noturna. Além disso, ainda há anúncios de boates na página.
Na décima página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, é possível ler a continuição da coluna Ferveção Queer, que conta com diversas fotos de leitores do jornal nas festas cobertas pela publicação.
Na décima primeira página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, os leitores podem encontrem a coluna One Way, cujo fundo é estampado por um homem com cabelos curtos virado de perfil lambendo seu bíceps.
Na décima segunda página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, é possível encontrar um texto intitulado Braços de Ferro, com um tutorial de como malhar os braços. A produção é acompanhada de diversas fotos de um homem sem camisa vestindo uma bermuda listrada curta levantando peso e indicando como realizar o exercício.
Na décima terceira página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, há um perfil jornalístico do estilista italiano Gianni Versace acompanhado de uma foto do profissional. Logo abaixo, é possível encontrar uma propaganda de uma festa.
Na décima quarta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, a coluna Homo Faz, Homo Mostra, traz um texto sobre a drag queen Rupaul. Ao fundo, há uma imagem da artista montada com uma peruca loira, batom vermelho e brincos grandes, segurando um bebê negro de fraldas que usa um chapéu coco vermelho.
Na décima quinta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, encontra-se a coluna Bolsa de Valores da personagem Vavá, que mostra coisas em alta e em decadência na comunidade gay, juntamente a propagandas de locadoras de filmes adultos e de um sexshop. Logo abaixo, há um box com espaço para que o leitor preencha suas informações pessoais e realize a assinatura anual do jornal por R$ 25.
Na décima sexta página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, é possível achar um homem nu sarado de cabelos longos segurando uma toalha branca na frente de suas partes íntimas ao fundo da coluna Qual É o Babado do Leitor?. No fim da página, há um anúncio de boate.
Na décima sétima página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, está a coluna Kaká Rolando, da drag Kaká Di Polly, além do texto Promiscuidade da coluna Falando Sério com Regina Bottari. Ao final da página, encontra-se uma propaganda do portal Mix Brasil.
Na décima oitava página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, os leitores encontram o texto A Queda do Muro e a coluna CyberMix.
Na décima nona página da 11ª edição do Babado, publicada em 1997, encontra-se o texto intitulado As Tias, com uma imagem de três homens vestidos de Shirley Temple, com vestidos de babado e cabelos cacheados arrumados com laços
Número traz coluna de namoro para leitores, perfil do estilista italiano Gianni Versace, tutorial de ginástica e incentivo ao uso de camisinha

Status na noite

De acordo com Maria Helena de Freitas, 56, uma das poucas mulheres a compor a equipe editorial do jornal, convidada por Regina Bottari, os leitores da publicação se resumiam a “gays, de classe média que iam às boates”. Paulo Reis, 66, que também foi redator na publicação, diz ainda que a maioria deles estava na faixa dos 20 anos. Ele se juntou ao jornal depois de conhecer o grupo Expressão, quando se mudou de São Paulo para Campinas, nos anos 1980.

A cobertura da noite LGBT+ feita pelo Babado fez com que personalidades famosas da cena gay da época concedessem entrevistas ao veículo. Nany People, Kaká Di Polly e Leonora Áquilla foram algumas das artistas que tiveram suas fotos ou nomes estampados nas páginas e nos textos do jornal.

“Às vezes a Nany People ligava para a gente e falava: ‘Vocês não vêm aqui ver minha peça? Eu tô aqui na cidade, vocês não vêm me entrevistar?' Então, a gente tinha essa rotina, de receber o artista ou ir até ele. Essas pessoas também estavam no começo da carreira e eram muito acessíveis. Elas valorizavam o jornal, porque não existia internet. Uma forma de atingirem o maior público possível era através de publicações”, explica Gregori.

Na imagem é possível ver uma página do Babado com duas fotos da drag Nany People, uma grande de ponta cabeça e outra menor de pé, em que a artista veste uma camiseta com a logotipo do Babado. Seus cabelos são vermelhos e sua maquiagem marcada com uma sombra azul e batom vermelho, com sobrancelhas finas e estrelas grudadas em seu rosto. A página acompanha um texto que fala sobre a apresentadora dentro da coluna Homo Faz, Homo Mostra. Amiga da equipe editorial do Babado, a drag Nany People apareceu em 1998 no jornal

Muito além de "negro e gay"

Um dos integrantes mais célebres do jornal foi Jairo Silva, cofundador do Expressão e do Babado. Ele assinava seus textos na publicação como Blueboy, persona que criou para se apresentar nas boates da região. Apesar de não existirem fotos que registram a época, os ex-integrantes da publicação recordam que o editor era popular na cena gay e tinha muitos admiradores nas boates em que se apresentava. “A performance dele era linda, maravilhosa. Ele dançava muito bem. Ele tinha uma mente muito aberta para a época”, comenta Regina.

A jornalista conta ainda que Jairo, como um homem negro e gay, sofreu tanto pelo racismo quanto pela homofobia, inclusive nos espaços que tinha por hábito frequentar. Regina se lembra de um caso explícito de preconceito sofrido por Jairo em uma das boates em que havia sido chamado para se apresentar:

“Ele chegou à paisana, sem estar montado, em São Paulo, e foi barrado por ser negro. Quando ele se explicou, o cara deixou ele entrar, mas só depois de chamar o gerente para confirmar se era ele mesmo. É lógico que a gente fez um escândalo.”

Diante dessa realidade, Eduardo Gregori dedicou um de seus textos, em maio de 1997, aos desafios enfrentados pelo colega. Em uma entrevista pingue-pongue intitulada “Negro Gay”, ele descreve Jairo inicialmente como um “prato perfeito a ser degustado pelos hipócritas e bárbaros que ainda habitam o planeta em plena mudança de século”.

Ao questionar que tipo de comentário discriminatório Jairo mais escutava, o colega responde: “‘Além de preto, é bicha’, ou ainda ‘honra a cor, negão’. Da mesma forma que na sociedade é passada uma imagem de que o negro não é bonito e inteligente, apenas um garanhão bem-dotado, já ouvi frases ridículas das bibas como: ‘Você saiu com fulano? Mas ele é dundaDunda (adjetivo):
Gíria usada para se referir a homens gays negros
’. A outra bibaBiba (adjetivo):
Gíria usada para se referir a homens gays
, tentando se ver livre do preconceito, imediatamente responde: ‘Ah! Mas a necaNeca (adjetivo):
Gíria usada para se referir ao órgão genital masculino
é de benzíssimo!!!’”.

Os ex-membros do Babado não sabem do paradeiro de Jairo, mas acreditam que ele já tenha morrido.“Ele tinha uma postura avançadíssima para a época, porque, além de lutar pelos homossexuais, lutava também pelos direitos dos negros. E tinha uma parte artística muito forte”, sintetiza Regina.

imagem de uma pagina de jornal O editor-chefe Jairo Silva se abriu em entrevista ping-pong sobre os vários desafios que sua identidade trazia em uma sociedade preconceituosa, em 1997

Entre cartas e conselhos

Desabafos como o feito por Jairo Silva não eram incomuns nas páginas do Babado, e não vinham apenas dos redatores. Em cartas, os leitores diziam se sentir acolhidos pelo jornal, que sempre buscava pautas que abordassem os anseios das pessoas da comunidade LGBT+ em uma cidade preconceituosa. No texto de novembro de 1996 “Como anda a cabeça dos nossos pais?”, um redator não identificado tenta desmistificar o difícil relacionamento que um homossexual pode ter com os pais após revelar sua orientação sexual.

“Muitos pais sentem um amargo ressentimento por tomarem conhecimento da homossexualidade do seu filho ou filha. Esse sentimento está baseado num falso entendimento que ser gay é algo que se escolhe, que foi uma decisão consciente e talvez tomada para magoar os pais. Na verdade, os gays e as lésbicas não escolhem sua sexualidade, eles simplesmente são o que são: a homossexualidade é sua verdadeira natureza”, escreve.

Além disso, em um editorial assinado pelo Expressão em 1997, o grupo busca bater de frente com a homofobia da sociedade campineira da época.

“Vivemos numa sociedade cada vez mais consciente de sua diversidade cultural. Nós homossexuais somos, sem dúvida, a expressão dessa diversidade, e por consequência, vítimas dos estereótipos apressados e generalizados. Temos contra nós a cultura em que os homossexuais estão sob um manto de menosprezo e indignidade, que acaba refletindo em personalidades atrofiadas e tristes, muitas vezes encobrindo grandes e nobres seres humanos”, denuncia.

Como explica Regina, o problema, entretanto, era muito mais sério do que apenas a manutenção de estereótipos. “Havia muita agressão a travestis e a gays. A gente queria o direito de andar na rua de mão dada. A gente não tinha isso. As pessoas ficavam xingando. Muitas vezes, a gente sabia quem tinha batido, quem tinha matado a travesti, e não acontecia nada. Ninguém ligava para isso”, relata.

Nessa luta contra o preconceito campineiro, o jornal passou a acolher em sua sede adolescentes da cidade que entravam em contato com a publicação em boates ou por meio de palestras realizadas pelo grupo Expressão em escolas particulares. A partir de então, os membros do periódico também começaram a receber pedidos de ajuda desses jovens, que queriam se declarar homossexuais para suas famílias, ou que haviam revelado sua orientação sexual e sido expulsos de casa.

Por conta disso, os colunistas iam até as casas das famílias para mediar conversas de conciliação, mas eram mal recebidos e, muitas vezes, “escorraçados a pontapé”, como relembra Regina.

“Nós começamos a ser muito procurados. Teve um caso de um pai que, quando o menino levou o jornal para explicar o que ele sentia, fez ele comer o jornal. A meninada tinha um medo absurdo. Nós os orientamos da forma que podíamos e chegaram a ameaçar a gente de morte”, conta.

Luta e prevenção

Além dos adolescentes, o Babado ajudou seus próprios redatores a compreenderem melhor sua sexualidade. O colunista Paulo Reis, conta que, ao ingressar no Expressão e se envolver na produção do Babado, sua relação com sua orientação sexual melhorou, por passar a se relacionar com mais frequência com pessoas da comunidade LGBT+.

img
img
img

“Eu me descobri nos anos 1980 e morava em São Paulo. Logo que comecei a sair na noite e a namorar, surgiu a Aids. Para quem não viveu aquele período, acho que é muito distante, mas foi algo extremamente brutal. Era apavorante. Eu tive amigos que morreram e definharam de uma maneira muito rápida. [Por meio do Babado] eu entrei em contato mais direto com a prevenção. Para o bem e para o mal isso fez com que eu me protegesse. Cheguei em Campinas com esse fantasma e fui entendendo que era possível levar uma vida sexual ativa com prevenção”, comenta.

Julio Teodoro ressalta que esse “fantasma da Aids” foi desmistificado pelo Babado, principalmente por meio da sensualidade estampada em suas primeiras páginas, com a exibição dos corpos masculinos: “Na década de 80 tinham umas capas muito apelativas [na imprensa], em que mostravam pessoas doentes com Aids, no leito de morte, associando essa imagem da doença com a homossexualidade. Então, mostrar esse corpo, desse jeito, para essa comunidade, aciona o desejo, mas também aciona a visão de si. Cultivar esse corpo é trabalhar com a autoestima nesse período específico. No Babado as primeiras capas exploram muito esses homens”.