ELAS POR ELAS

Minoria no Babado, lésbicas
resistiram ao preconceito

Regina Bottari (foto) e Maria Helena de Freitas foram as únicas mulheres a fazerem parte da redação

27 nov. 2023

Durante seus dois anos de duração, o Babado, jornal LGBT+ pioneiro em Campinas, deixou claro que não abrangia todas as letras da sigla. Nesse período, apenas duas mulheres lésbicas fizeram parte da redação: Regina Bottari, a primeira a se juntar ao grupo, e Maria Helena de Freitas, amiga recrutada para ajudá-la a quebrar barreiras.

Minoria dentro da equipe editorial, as duas precisaram lidar com recorrentes comportamentos machistas e lesbofóbicos de seus colegas homens. Paulo Reis, 66, e Paulo Mariante, 60, também redatores do Babado, concordam que o ambiente não era amigável para as mulheres. Segundo eles, parte dos membros da redação defendia que o público do jornal era estritamente masculino. “Minha impressão é que pelo fato de Regina ser a única mulher lésbica, na época, ela acabava ficando pouco estimulada a fazer esse embate [contra os homens]. Eles sempre tinham esse argumento de: ‘O público do jornal gosta disso’”, afirma Mariante.

No podcast abaixo, Regina e Maria Helena falam sobre as vivências das mulheres do Babado em uma redação predominantemente masculina, lutando contra o preconceito de seus colegas. A transcrição completa do episódio também está disponível.

De frente com o machismo

Mesmo com a entrada das amigas, a forma como o jornal representava as lésbicas continuou preconceituosa. Um dos maiores exemplos é o texto “As Caminhoneiras”, de 1997, que ofende a comunidade das mulheres gays, reproduzindo estereótipos e violências de gênero. No entanto, nessa mesma edição, Maria Helena escreveu um texto em que destacava a pluralidade da comunidade lésbica e a luta dessas mulheres contra o preconceito. No texto intitulado “Excluídas dos Excluídos”, ela dizia: “Como todo grupo, nós temos também o nosso arco-íris. Há mulheres homossexuais de toda forma, cor e personalidades (para todos os gostos)”. Veja a transcrição dos textos abaixo.

Nesta imagem é possível encontrar a página do texto As caminhoneiras, publicado em 1997 no Babado. Seu fundo é azul escuro e conta com a imagem que mostra a partir do tornozelo de uma pessoa um único pé que calça um coturno preto. Com se título em destaque no topo da página, ao final dela encontra-se um anúncio de uma boate.
texto na imagem: Este mês iremos falar um pouquinho do universo tão peculiar das meninas que gostam de meninas. Só esperamos que levem tudo na brincadeira, pois não queremos um exército de sapas em nossa porta, armadas de porretes e soco-inglês, prontas para arrebentar a redação de nosso jornal. 

                            Como as bibas, as lésbicas também são rotuladas e chamadas pelos mais diversos nomes. Sapatões, bolachas, caminhoneiras, borracheiras, tratoristas, fanchonas, Zezão, rala-xota, e por aí vai. E olha, que só citamos os nomes mais simpáticos. O grande mal da maioria das lésbicas é querer se tornar a mais machona possível. Para esconder o peito, usam aquelas camisas horrorosas de algodão xadrez, com bolsos enormes onde carregam maço de cigarro, caneta bic, caixa de fósforo, celular, pente de osso de tartaruga, calculadora e se duvidar, até radinho de pilha. Aliás, no quesito modelista, as sapas são imbatíveis.  Só que sapa não usa modelista, joga “uns pano” em cima do corpão. Guiadas por produtoras de moda formadas nos melhores campos de concentração alemães, elas dão um show quando se trata de roupas.
texto na imagem: Calças de tergal, sapato 757 da Vulcabrás com meia esgarçada, cinto com a inicial do nome da fivela e têm aquelas que usam até Ki-chute, diferente das bibinhas que desde a mais tenra idade usam conquinha e melissinha furadinha nos pés.

                            Isto sem falar nas cuecas Dog, usadas com um par de meia entre as pernas para dar a impressão de que têm necas. Que meda! 
                         
                            Quando se trata de etiqueta, assunto tão difundido entre as monas, a coisa é mais feia ainda. Elas têm um prazer quase orgátisco em arrotar, cuspir no chão e coçar o saco imaginário. E como se não bastasse, teimam em ficar com um ridículo palitinho de fósforo no canto da boca. 
                         
                            O esporte preferido delas é a sinuca. Passam a noite toda em disputas ferrenhas, bebendo pinga ou cerveja. E como bebem, bon Dieu! E não ficam bêbadas. Copo atrás de copo e elas continuam ali, feromonas, prontas para mais uma partidinha. Quando sai uma briga, é um verdadeiro pega pra capar. Não recomendamos aos mais sensíveis, e isto inclui todas as bibas, a assistirem uma disputa de bilhar entre duas sapas. Esteja preparado, para no calor de uma discussão, se desviar dos tacos, das bolas e até mesmo da mesa de sinuca, que vai passar rente pela sua cabeça.
texto na imagem:  Elas também adoram assistir lutas de full-contact, do tipo vale tudo, onde jorra sangue para tudo quanto é lado. Um hooorror! Se menstruação para as rachas é um verdadeiro pavor, para as sapas é o próprio demo encarnado, pois uma vez por mês, elas se lembram que toda aquela pinta de machão não é nada, pois elas são mulheres mesmo…   

                            Ao contrário das moninhas, que adoram frequentar vernissages, coquetéis e jantarzinhos íntimos, as sapas adoram um churrasco. Elas movem os céus para “assar umas carne”, sempre regado com muita cerveja e com um bom pagode como trilha sonora. E dá-lhe Fundo de Quintal. Por falar em pagode, coisa que elas fazem muito bem é batucar seja em caixa de fósforo, latinha de cerveja, panela ou pandeiro. Toda escola de samba sempre tem pelo menos uma sapata em sua bateria.
                         
                            Quem quiser encontrar aquele batalhão de sapatonas basta ir num show da Simone. É uma verdadeira loucura. Parece um estádio de futebol em domingo de decisão de campeonato. Entre no embalo, mesmo você sendo fina e grite a plenos pulmões: ABSOLUTA, DELICIOSA, MARAVILHOSA, GOSTOSA!!! Não fique achando que você errou o endereço e entrou no terreiro de Mãe Menininha, por todas estarem vestidas de branco, se bem que elas são macumbeiras mesmo. Nisto, elas são mais poderosas que aquelas monas malditas que vivem com um sapo seco com a boca amarrada dentro do bolso e velas pretas no porta-luvas do carro, prontas para um trabalhinho rápido.
texto na imagem: Quando se trata de dinheiro, sai de baixo, meu amor! É aí que elas mostram todo seu poder. Elas não se contentam em ter uma motinha 125, compram logo uma Harley Davidson enorme. Carro, só se for caminhonete, toda equipada, com carroceria, pois elas estão sempre dispostas a carregar barris de chopp, caixas de som, e dar uma mãozinha naquela sua mudança.    

                            O gosto musical delas é um tanto eclético, mas não deixa de ser apurado. Sapas idolatram Simone, Bethânia, Zizi Possi, Cássia Eller, Marina, Joanna, Alcione, Zeca Pagodinho, Originais do Samba, Elimar Santos, Zélia Duncan, Angela Rô Rô e mais uma “porrada de gente boa”, né, mano? E como qualquer pessoa, as entendidas amam e querem ser amadas e vivem a vida do jeito delas. É isto aí e força no coturno!
Nesta imagem é possível encontrar a página do texto Excluídas dos excluídos, de Maria Helena de Freitas, publicado em 1997 no Babado. Ocupando uma pequena porção da página o texto é encabeçado por uma imagem em preto e branco de duas mulheres brancas nuas uma em cima da outra.
texto na imagem: Já que os excluídos estão na maior moda, vou falar aqui de mais um tipo de exclusão: a exclusão das sapas e o grande preconceito contra elas que existe dentro do próprio mundo gay. Eu estou falando das sapas bem masculinas - a chamada sapatão ou sapatona. 

                            Como todo grupo, temos também o nosso arco-íris. Há mulheres homossexuais de toda forma, cor e personalidade (para todos os gostos). Mas até no nosso meio tem existido também uma ponta de cinismo e riso contra mulheres bem macho, ou contra aquelas que mudam de sexo. É correto isso entre nós? 
                         
                            Durante muitos anos eu expliquei o meu preconceito dizendo que eu não deixava de ser mulher ao desejar uma outra e as mulheres que tomavam “posições de macho” estavam recriando os modelos sociais que tanto têm aprisionado a todos.
texto na imagem: Ainda sou desta opinião. Acho que se nós não queremos aceitar o papel de mulher, também não temos que aceitar o oposto, ou seja, quem não quer ser racha, não é obrigada a bancar o macho, pois não há somente duas possibilidades de amor e desejo.    

                            No dia que cada uma de nós negou o destino de “mulher”, a liberdade deveria ter sido o próximo passo. Mas a moçada acaba se aprisionando em outro papel, o de macho. E assim, a gente concorda com os modelos de homem e de mulher - homem cospe no chão/ mulher é fofoqueira… e um bando de besteiras a mais. Essa minha opinião não é, absolutamente, motivo para se ter preconceito contra qualquer lésbica que exista. O que eu estou querendo é que a gente discuta esses modelos que foram colocados para a gente. 
                         
                            Como já disse antes, sapa tem de todo jeito. Há quem goste de bancar a esposa, há quem goste de bancar o marido, há quem não quer nem um nem outro, e há quem quer trocar (efetivamente) de sexo. Tudo bem. Cada uma pode falar de sua própria experiência - o importante é que saibamos ouvir umas às outras e que juntas possamos criar meios de suportar e evitar todas as formas de agressão que sofremos diariamente. E, além de tudo, estabelecer de uma vez por todas não só a tolerância mas o absoluto respeito por nossa opção sexual.

O texto de Lena foi um dos motivos para que os integrantes do Babado levassem o número para um bar frequentado predominantemente por mulheres lésbicas. O responsável por entregar os exemplares foi Paulo Mariante. Ele relembra que, quando as mulheres abriram o jornal e leram o artigo “As Caminhoneiras”, elas pediram para que ele saísse do estabelecimento.

Um ano depois, em 1998, a lição ainda não havia sido aprendida. A edição de março, mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, trazia um texto escrito por Regina Bottari intitulado “Femme Fatale, os homens e eu”. Nele, denunciava o tratamento que recebia dos colegas do Babado e ainda revelava que seus textos eram barrados no início de sua trajetória no jornal. “Aprendi que gay é tão machista quanto qualquer bofe, a essência masculina é imutável”, escreveu. Apesar das denúncias e acusações, o texto terminava de forma amigável, com Regina dizendo que era respeitada e até “mimada.”

Nesta imagem é possível ver a capa da edição do Dia da Mulher do Babado, publicada em março de 1998. Com um filtro rosa cobrindo-a por inteiro, vê-se uma mulher branca de batom vermelho e com um coque sentada de pernas abertas segurando um cigarro. No restante da capa, há manchetes amarelas em contraste e o logotipo do Babado em letras garrafais, também em amarelo, sobreposto pela mulher ao topo da imagem.
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texto na imagem: Há pouco mais de um ano comecei a escrever esta coluna, e, pra comemorar, resolvi no mês das mulheres falar sobre a minha convivência com os homens. 
                            Foi engraçado quando comecei, só eu de mulher, no meio de todos aqueles homens, entreguei um artigo e fiquei esperando… “A edição já fechou, fica pra próxima!”. 
                         
                            Na próxima não teve espaço, ficou pra próxima da próxima…Entreguei um texto poético para o Dia Internacional das Mulheres do ano passado, mas o editor recusou, era brega, não combinava com o perfil do jornal. Fiquei P da vida, entreguei outro, não desisti. E outro, e outro… e acabou virando coluna fixa do Babado. 
                         
                            Fui aprendendo, convivendo, observando, afinal, são anos de janela tendo que me impor para pai, irmão, sobrinhos, namoradas e marido. E então descobri que o mundo é masculino até que a gente prove o contrário. Aprendi que gay é tão machista quanto qualquer bofe, a essência masculina é imutável, homens… Bah!
texto na imagem:    A coluna foi se firmando, chegaram os elogios, os comentários, as cartas, mostrei para todas as minhas amigas, entreguei o jornal de mão em mão, e então vinha aquele comentário pior que o machismo preconceituoso: “Mas o jornal é gay, só tem homens!”. Claro!!! É feito por homens, e homem é homem, só muda o nome. 

                            Que venham as mulheres! Chamei todas, discursei, expliquei, panfletei, fui até chata de tanto que infernizei amigas chamando para participarem, escreverem, opinarem e nada…sozinha com esse monte de homens, que historicamente saíram na frente em tudo, até na “ferveção, escancarar armários e foram à luta, sobrando para nós mulheres mais uma vez a carga social, emocional e familiar. Mais uma vez eles se aventuraram e nós ficamos em casa enrustidas, endeusadas, mistificadas, sim, porque, todo mundo tem um amigo bichinha que é uma graça, mas da amiga sapatão ninguém fala porque não é legal, “vão pensar que eu tenho um caso com ela”. 
                         
                            O que para os homens está sendo libertação, fashion, para nós mulheres, é matar um leão por dia, é vencer uma briga constante pelo direito de sermos o que somos, é dar a cara a tapa, é mexer nas raízes e nas feridas da sociedade.
                         
                          Minha convivência com os homens tem sido da paixão incondicional à raiva mortal em segundos. Tem sido gratificante, enriquecedora, o que não me impede de querer esganá-los algumas vezes. Já fui tida como uma lésbica com consciência gay, o que é ridículo, pois minha orientação é homossexual.
texto na imagem: O que defendo para minhas amigas é que foi muito mais fácil me aproximar dos gays do que das lésbicas, quando precisei de um amigo para falar de homossexualidade no meio da confusão dos meus pensamentos, quem veio me ajudar foi um grande amigo, querido gay! As mulheres, amigas e lésbicas, demorei muito mais para achar.    

                            Às vezes, no meio das nossas conversas, saem paus homéricos e a gente se xinga, apela com aquelas frases feias “é coisa de viado, de bicha e eles devolvem, Só podia ser racha, e no fim a gente ri do nosso próprio preconceito, do nosso próprio machismo enrustido, porque eles são eles mesmo e nós temos um pézinho lá no estribo, um resquício de educação machista que precisamos sanar, tirar de vez esse ranço. 
                         
                         Ser mulher é tão bom, eu gosto tanto e gosto de outras mulheres também e foi uma longa jornada chegar até aqui, trazer isso a público, rodeada de homens de todos os tipos. Há mais de um ano convivendo quase diariamente com os meninos do grupo, me sinto muito à vontade, muito respeitada e até muito mimada por eles. Há alguns meses, a Lena caiu do céu e vem trabalhando conosco. Maria Helena tem dividio comigo a dor e a delícia de sermos mulheres do Expressão, e juntas temos conseguido mais uma grande conquista que é sermos lésbicas num mundo gay. 
                         
                         Hoje, quando meu editor me liga e diz, “Perua, você está atrasada com sua matéria, preciso fechar sua coluna!” Eu faço charme, atraso mais um dia e me sinto docemente vingada.

A redatora lutou ainda para que a capa desse número fosse estampada por duas lésbicas se beijando, algo inimaginável para a época. Com muita relutância, a ideia foi aceita, mas, no dia em que a edição seria impressa, parte dos homens da redação mudaram a capa, descumprindo o combinado. Como resultado, o jornal estampava uma única mulher em destaque, em pose compenetrada. O que deveria ter sido uma vitória para as mulheres trouxe mais desarmonia na equipe, levando à debandada de alguns integrantes, insatisfeitos com o periódico.