FESTA OU LUTA

Despolitização do periódico gerava
desavenças entre redatores

Para ex-integrantes, o foco na noite gay e no humor fez o Babado se afastar de seu objetivo inicial de militância

27 nov. 2023

Dois anos depois de o primeiro número do Babado ser publicado, o jornal LGBT+ pioneiro de Campinas se rendeu ao acúmulo de problemas internos e teve seu fim precoce em junho de 1998. O motivo de maior desavença entre os colegas era o fato de que, apesar de o veículo ser fruto do grupo militante Expressão, a publicação pouco refletia a luta por direitos humanos defendida pela organização, dando destaque especial para a noite gay e suas festas.

“Quando a gente queria fazer uma coisa um pouco mais séria, vinha aquela explosão. Diziam que o Babado não era para isso. A gente sempre batia na tecla de que a publicação era o meio de informação do grupo Expressão, mas isso foi se deixando morrer no meio do caminho”, relembra Regina Bottari, 60, ex-colunista do Babado.

Para Paulo Mariante, 60, que participou da fundação do grupo Expressão, a publicação nem sempre fazia discussões relevantes sobre temas políticos relacionados à comunidade que atendia, porque parte da redação, e também do público, via a luta por direitos com “aversão”. De acordo com advogado envolvido com causas da militância gay, as pessoas demonstravam se interessar mais pela cena noturna. “Eu percebia um certo pé atrás [com a militância], embora tivesse espaço. Talvez, naquele grupo todo, o tema fosse menos atraente. O Babado acabava ficando nessa ideia do glamour, que eu entendo, mas nunca nos ajudou em nada”, conta.

“O jornal só mostrava o lado deslumbrante da vida LGBT+ e eles não queriam essa imagem [política] para o jornal. Eles queriam aquela imagem da purpurina, da farra, da noite”, completa Regina Bottari, que chegou a ser editora-chefe do Babado.

Essas divergências também afetavam a convivência entre os membros do Babado, o que tornava as reuniões de pauta da publicação acaloradas, recheadas de conflitos protagonizados por seus redatores. “As nossas brigas eram sempre por causa disso, porque a gente queria dar um certo toque, às vezes de maturidade, de realidade, e os meninos não concordavam”, conta Regina.

Para Paulo Reis, 66, integrante que também defendia as pautas políticas, uma das causas disso era a diferença de idade entre os colegas de redação: “A gente tinha um certo status por fazer parte do Expressão, e era VIP nas boates. Então, para a moçadinha que estava ali em volta, era legal. Eu chego ali com quase 40 anos, no meio de uma moçada de 20 anos, com os hormônios pulsando, que quer putaria, que quer ferver. Eles não estavam interessados em quem estava morrendo, em quem estava sofrendo, em quem estava sendo expulso de casa, em quem estava perdendo emprego. E essa era uma pauta que a gente queria discutir”, reflete. Quando diz “a gente”, Reis se refere a ele, Paulo Mariante e Maria Helena de Freitas, 56, para quem a militância era a pauta mais importante. Segundo eles, o jornal, ao não investir pouco em temas políticos, se tornava superficial.

Eduardo Gregori, 54, colunista que cobria festas na região e que se tornou editor-chefe da publicação, não fazia parte desse grupo, mas, hoje, vê a situação com outros olhos. “Eu acho que o Babado queria ser comparado um pouco com a Elle, com a Vogue, talvez. Mas ele também tinha que ter um pouco de militância, porque era de um grupo. E isso era um bocado estranho. Como um grupo tem um jornal em que só se valoriza o bonito, a noite, o glamour? A gente tem que não só mostrar essa futilidade da noite, mas a gente está aqui para fazer também militância, para que a nossa causa seja ouvida, valorizada e reconhecida”, explica.

Julio Teodoro, 31, pesquisador de temáticas LGBT+ que fez sua dissertação de mestrado sobre o Babado, também reflete sobre a linha editorial despreocupada adotada pelo periódico ao longo dos anos: “Acho que o Babado estava muito mais ligado ao colunismo social do que à discussão de pauta política. Não que ele não o fizesse. Ele também mobiliza pautas políticas, só que não é um periódico que se preocupa em comunicar o que estava sendo feito [pela militância] nesse sentido constantemente”.

Neste carrossel, encontram-se diversas capas do Babado ao longo dos meses e anos, cada slide com duas delas. Na primeira imagem, a capa estampa dois homens brancos nus de costas com cabelos pretos curtos se abrançando e tampando os rostos. Nessa imagem ainda é possível ler manchetes do jornal e encontrar o logotipo do grupo Expressão, além da logo do jornal em letras garrafais roasas ao topo. Na segunda imagem, um homem branco malhado está sem camisa sorrindo. Também há manchetes e até um anúncio, além da logotipo antiga do jornal - letras garrafais brancas dentro de uma forma oval vermelha.
Neste carrossel, encontram-se diversas capas do Babado ao longo dos meses e anos, cada slide com duas delas. Na primeira imagem, há uma homem branco de cabelos pretos molhados sem camisa e de sunga azul sentado em uma prancha branca no mar, olhando para o lado e sorrindo com as mãos encostando na cabeça. Já na segunda capa, vê-se um homem branco sarado sem camisa de sunga branca, encostado em um árvore na floresta atingido por flechas de um cupido. Em ambas as imagens, há manchetes e o logotipo do Babado em letras garrafais dentro de uma forma oval vermelha.
Neste carrossel, encontram-se diversas capas do Babado ao longo dos meses e anos, cada slide com duas delas. Na primeira imagem, a capa conta com um close up de homem branco suado com cabelos pretos curtos e o sol refletindo em sua pele enquanto olha para baixo. A segunda imagem é composta por três homens brancos vestidos de cowboy com chapéu e camisas de botão verde clara abertas, se abraçando de costas enquanto seguram a coxa uns dos outros. As capas contam com manchetes e o logo do Babado ao topo.
Neste carrossel, encontram-se diversas capas do Babado ao longo dos meses e anos, cada slide com duas delas. Na primeira imagem há um fundo azul claro e um homem branco sarado de cabelos pretos curtos encostado em uma pilastra branca, olhando para cima. Em seu peito, há um ramo de planta. Já na segunda capa, há um homem branco, sarado e completamente nu  deitado em um cenário mal iluminado, que esconde seu rosto. A mão dele segura suas partes íntimas, sendo possível ver vislumbres dela. Em ambas as imagens, há manchetes e o logotipo do Babado em letras garrafais dentro de uma forma oval vermelha.
Com design feito pelo já morto Micael Jaques, o Babado era conhecido por ousar em suas capas coloridas com fotos retiradas da internet sem autorização de homens, em sua maioria brancos, nus e seminus fazendo poses provocativas enquanto exibem seus corpos sarados

Contradições

As discordâncias editoriais, entretanto, não eram o único problema que desagradava a alguns membros do jornal. Para Mariante, a linguagem utilizada em parte dos textos que compunham a publicação chegava a ser pejorativa, com tons de elitismo e racismo. Sua principal lembrança é da coluna da personagem Neide Basfond, cujo autor o ex-Babado não lembra quem era.

“Teve um texto [da Neide] a respeito de um homem negro. A forma de se referir a ele em vários aspectos e no desfecho da ‘piada’ eram terríveis”, relembra. Ele ainda ressalta que os textos da personagem tinham uma certa influência do programa humorístico “Casseta e Planeta”, com piadas escrachadas e em sua maioria preconceituosas.

O alvo da acusação de racismo seria uma resposta de Neide a uma carta de um leitor da cidade de Santos, em São Paulo, publicada na edição de janeiro de 1998: “Não sei como você tem coragem de me perguntar o que eu posso achar disso? É óbvio sua safada! Você não passa de uma moninha muito da cagona. Onde já se viu fazer coisas assim com um belo negão. Se bem que ele não deve ser lá muito limpinho também! Quem não está preparado para fazer aquele atendimento rápido, deve conter os impulsos. Ficasse só na boquete. Ou então porque não aproveitou o marzão ali na sua frente e não fez uma higiene íntima caprichada. O único risco do negão seria ficar com um siri pendurado na neca. E desde quando eu sou amigona de chequeira? Agora eu entendo de onde vem a poluição do litoral sul do nosso estado…”

Mariante ainda ressalta que não só ele como diversos outros membros do Babado, incluindo o próprio fundador da publicação e do grupo Expressão, Fernando Tambolato, ficaram incomodados. Uma reunião foi feita com a presença da pessoa por trás da personagem Neide, porém o autor se recusou a mudar seu comportamento.

Esta imagem é uma captura de tela de uma resposta a um leitor da coluna Neide Basfond, em que a personagem fala de forma gordofóbica. Nela, a persona diz que: quem gosta de gordo é endocrinologista
Nesta resposta da coluna Neide Basfond, a personagem defere ofensas racistas.
Neste outro print da coluna Neide Basfond, Jairo Silva, responsável pela persona, defende a honra do jornal que foi criticado por um leitor.

Na edição de maio de 1998, a identidade de Neide Basfond foi revelada. O leitor Antônio Carlos Pinheiro escreveu uma carta endereçada aos editores do Babado em que se mostrava incomodado com o tratamento “ridículo, representado por uma cultura de baixo calão”, identificado na coluna da personagem.

A carta foi publicada e respondida pela equipe do jornal. O editor-chefe, Jairo Silva, que era um homem negro, assumiu a autoria de Neide e se defendeu das acusações feitas. Jairo revelou que o intuito da personagem era ser inconveniente. A ideia do pseudônimo era ser um espelho da comunidade LGBT+, que podia ser preconceituosa sem perceber.

“Neide Basfond é o próprio retrato da grande maioria dos homossexuais brasileiros que não se dão ao respeito quando falam de pobres, negros e diferentes. Por isso ela [Neide Basfond] apela… Para despertar o inconsciente!”.

Outro problema criticado por Mariante era a presença unânime de corpos brancos e magros masculinos nas capas e páginas do jornal. “Na Double [Face, boate de Campinas], The Club [boate de Campinas], e mesmo as [boates] de São Paulo, a maioria dos gogo-boys eram brancos. De dez, em média oito ou mais eram brancos. Essa não é a realidade do Brasil, nem de São Paulo. Mas o Babado reproduzia isso”, denuncia.

O ex-membro do jornal diz que tentou discutir uma possível mudança nesse aspecto com os outros redatores, mas a ideia foi rejeitada. “Eu lembro de ter colocado de uma forma diplomática. Mas a maioria [da redação] falava que a cena [gay] era assim. Eu acabei não dando mais corda porque, de certa maneira, havia uma lógica em dizer que aquele era o padrão, mesmo que eu discordasse. Tanto em relação ao perfil mais bombado quanto em relação a essa questão da branquitude”, diz.

De acordo com Teodoro, corpos fora do padrão estético predominante da época, representado por homens brancos malhados, como os gordos, não tinham espaço no jornal.

“Quase não aparecem corpos gordos. Quando aparece, é uma drag queen, que está em uma posição caricata, nesse lugar do riso. Essa escolha é extremamente política. As capas dialogam muito mais com o padrão gay da época”, analisa.

A gota d'agua

Os problemas do jornal começaram a se agravar quando, em março de 1998, uma edição que celebrava o Dia Internacional da Mulher foi proposta pelo grupo que defendia abordagens mais políticas na publicação e aceita com relutância por seus colegas. No entanto, no dia da impressão, uma parte dos redatores mudou a capa planejada por Regina Bottari, a primeira mulher a se juntar ao jornal, que teria duas mulheres se beijando. No fim, a capa estampava uma única mulher em destaque com uma pose reflexiva.

Depois de 25 anos, Paulo Mariante alega má-fé no comportamento dos colegas envolvidos na sabotagem. “Eu tenho uma memória de estar naquele apartamento [de Tambolato, onde a redação do Babado era sediada], e as outras pessoas do jornal estavam bem distantes [de nós]”, diz, relembrando como foi organizar a edição especial com a equipe. Ele ainda se recorda do sentimento de traição ao saber da notícia por Paulo Reis, que estava na gráfica para acompanhar a impressão dos exemplares: “O Paulo tomou um susto e falou: ‘Tem um problema, aqui tem outro jornal’. Foi horrível, a relação de confiança ficou muito abalada”.

Com o ocorrido, parte do grupo que defendia a abordagem política do Babado decidiu sair do jornal em busca de projetos alinhados a essa militância. Mariante, Maria Helena e Reis deixaram a publicação e o Expressão para fundar o Identidade, o grupo de defesa de direitos humanos ainda em atividade na cidade, com foco em temáticas da militância. Já Regina, que também lutava pela abordagem de pautas mais políticas no jornal, decidiu continuar na publicação, pois gostava do que fazia. “Meu envolvimento era emocional, além do engajamento político”, explica.

Uma hora, tudo vira purpurina

Mas a polêmica edição do Dia Internacional da Mulher e a debandada de alguns dos redatores não significou o fim definitivo do jornal. O golpe fatal foi o adoecimento de Jairo Silva, cofundador do Expressão e editor-chefe original do Babado, que durante os anos de sucesso da publicação desenvolveu problemas com uso de drogas. Diante desse cenário, seu companheiro, Fernando Tambolato, que também participou da fundação do grupo que criou o jornal e financiou o periódico, se afastou da publicação para cuidar do parceiro.

Para Eduardo Gregori, que foi colunista e editor-chefe do jornal, a forma como Jairo priorizava a diversão e o prazer, que acarretaram seu adoecimento e ausência no jornal, fez com que a publicação não fosse mais a mesma.

“O grupo Expressão começou muito forte, muito coeso, com gente muito interessada. Mas ele foi se esfacelando, por conta desse hedonismo do Jairo. A base que sustentava o projeto foi junto abaixo”, analisa.

Desse modo, não foi apenas a redação do Babado que foi esvaindo: o dinheiro também. O financiamento do jornal vinha principalmente de anunciantes, como saunas, boates e bares. Porém, eles nem sempre pagavam pela propaganda. Isso fazia com que, principalmente Tambolato, e esporadicamente outros integrantes, precisassem desembolsar dinheiro para manter a publicação ativa.

“Nós tivemos problemas financeiros também porque a gente começou a levar calote de alguns anunciantes. Aí o Fernando também pagava muita conta. O Babado não se pagava, mesmo ele sendo famoso. A gente colocou dinheiro do bolso muitas vezes, o Fernando foi o que mais fez isso. E não foi uma vez, foram várias”, relembra Regina.

Conforme explica Julio Teodoro, o trabalho da manutenção de um periódico é muito custoso, e o Babado não conseguiu criar modos de sustentabilidade financeira. André Fischer , 57, fundador do Mix Brasil, portal de conteúdos com foco na diversidade sexual criado em 1994, complementa a ideia, associando o fato de que os membros da redação faziam um trabalho voluntário, e que apenas Tambolato era um financiador fixo: “Os jornais pequenos, de cidades pequenas, que não tinham possibilidade de financiamento, não tinham como se subsidiar. O trabalho voluntário aqui no Brasil tem outro tipo de dinâmica, diferente de outros países. Ele é de tempo muito curto”, pontua.

Para completar o encerramento do jornal, a produção da publicação coincidiu com o início da popularização da internet nos anos 1990, como lembra Gregori. Assim, a demanda pelo periódico não era mais a mesma, e o público passou a exigir conteúdos publicados mais rapidamente: “As pessoas foram migrando. [Falando algo do] tipo: ‘Olha, isso aqui vai sair no mês que vem. Então, não me interessa mais. Quero saber o que está acontecendo hoje’, acho que foi a conjunção de tudo isso”, conta.