[Julia Facca]: Mesmo sendo o primeiro jornal LGBT de Campinas, o Babado não era tão inclusivo quanto aparentava. As mulheres lésbicas pouco apareciam nas páginas da publicação. Durante os dois anos de circulação do jornal, Regina Bottari e Maria Helena de Freitas foram as únicas jornalistas a fazerem parte da redação. Regina, lembra-se com orgulho do espaço conquistado, já Maria Helena denuncia o machismo sofrido na época.

[Regina Bottari]: O grupo era fechado, eu fui a primeira mulher a quebrar a barreira e me orgulho disso. Me orgulho das coisas que eu conquistei. Mas eu hoje posso falar com muita segurança que eles eram extremamente machistas.

[Maria Helena de Freitas]: Eles eram chatos para caramba, eu achava. Muito preconceituosos mesmo em relação às lésbicas.

[Julia e Oscar Nucci]: Eu sou a Julia Facca e eu sou o Oscar Nucci. E esse é o Elas por Elas, um podcast da reportagem multimídia Que Babado!

[Sobe vinheta]

[Oscar Nucci]: Regina passou a frequentar a cena LGBT de Campinas ao descobrir sua sexualidade, e assim encontrou o grupo Expressão, que já tinha pouco mais de um ano de existência e era responsável pela produção do Babado. Como já escrevia algumas crônicas, ela quis se juntar ao jornal e, assim, se tornou a primeira mulher a fazer parte da publicação, logo em suas edições iniciais.

[Regina Bottari]: Quando eu cheguei, eles ficaram assombrados. Falaram, “Nossa, mas mulher? Por quê?”. Porque as mulheres não se expunham como os homens se expunham.

[Oscar Nucci]: Quando chegou à redação do Babado, Regina se deparou com um cenário pouco receptivo e dominado pelo machismo. Nessa configuração, seus textos muitas vezes eram barrados pelos homens que lideravam a equipe.

[Regina Bottari]: Eu acho que eu levei uns cinco ou seis meses para conseguir colocar o meu primeiro texto e eles aceitarem. Primeiro eles achavam que era sentimental demais, que o jornal era para o público masculino gay, que os anunciantes poderiam não gostar. Enfim, eles botavam mil coisas, e só depois de algum tempo eu consegui me firmar como redatora.

[Julia Facca]: Mesmo com a entrada de Regina, a forma como Babado representava as lésbicas deixava claro que a publicação ainda precisava passar por mudanças para se tornar inclusiva. Um dos maiores exemplos disso é o texto “As caminhoneiras”, publicado em novembro de 1997, em que o preconceito contra a comunidade lésbica é escancarado. O texto reforçava estereótipos e distribuía ofensas às mulheres homossexuais.

[Trecho do texto]: O grande mal da maioria das lésbicas é querer se tornar a mais machona possível. Se menstruação, para as rachas é um verdadeiro pavor, para as sapas é o próprio ‘demo’ encarnado, pois uma vez por mês elas se lembram que toda aquela pinta de machão não é nada, pois elas são mulheres mesmo.

[Julia Facca]: Para Caio Maia, pesquisador especializado nos estudos da imprensa lésbica, o texto é uma tentativa equivocada de fazer comédia às custas das mulheres.

[Caio Maia]: No nível daquele texto… Nossa, é um negócio que é surreal, né? E o pior é que tu sente que ele está tentando, de alguma maneira, ser engraçado. Fora que o título é “As caminhoneiras”, mas você vai lendo e vê que são as lésbicas, como se todas fossem caminhoneiras.

[Julia Facca]: Diante desse cenário, Regina buscou reforços para combater o machismo na publicação. Ela recrutou uma amiga que havia conhecido em um protesto organizado pelo grupo Expressão: Maria Helena.

[Regina Bottari]: Eu sempre deixei as portas abertas, mas a única que apareceu foi a Maria Helena. E porque eu fui buscar ela em casa [risos]. Eu fui atrás dela e falei: “Lena, você tem que me ajudar a mudar esse jornal, vamos escrever para esse jornal”. Daí eu pedi um artigo para ela.

[Oscar Nucci]: No Babado, assim como em outras publicações gays, era comum que os colunistas das publicações usassem pseudônimos para assinar seus textos. Apesar do forte machismo presente na redação, a maioria dos membros do jornal recorria, ironicamente, a alter egos femininos. Regina, no entanto, se recusava a se esconder por trás de um nome fictício.

[Regina Bottari]: Eu já era conhecida como cronista, como Regina Bottari. Então, não vi porque não fazer isso no Babado. Quando eu vi que ninguém colocou o nome, falei, “Ah, eu vou pôr”. Porque foi tão difícil para eu entrar, então, eu encarei essa, não tinha nada a temer.

[Oscar Nucci]: A coragem de Regina não se limitava apenas ao Babado, ela chegou a aparecer em rede nacional ao participar de uma matéria do Fantástico, da Globo, sobre a fama de “cidade gay” que Campinas carregava. A colunista foi a única do jornal a aceitar participar, após um pedido de Fernando Tambolato, cofundador do grupo Expressão.

[Regina Bottari]: Ninguém quis fazer essa matéria. O Fernando ligou para mim e falou “Olha, o Maurício Kubrusly está lá no Expressão, ele está procurando alguém para fazer uma matéria, mas ninguém quer aparecer. Você não quer aparecer?”. Eu falei “Ai, eu vou”, A gente escreveu a matéria, uma amiga minha que é historiadora validou a matéria, e apareceu no Fantástico eu explicando junto com essa minha amiga.

[Julia Facca]: O ápice da tensão entre as redatoras e o grupo de homens do Babado ocorreu quando Regina sugeriu uma edição voltada para o Mês da Mulher, com direito a duas lésbicas se beijando na capa, em março de 1998. A ideia foi aceita com relutância.

[Regina Bottari]: Foi um parto conseguir essa capa. Essa capa, eles colocaram até os patrocinadores no meio. Dizendo que os patrocinadores não iam topar ter uma mulher na capa, que não iam gostar disso, que ia pegar muito mal, e foi uma lenga-lenga. Essa capa saiu aos 47 do segundo tempo.

[Maria Helena de Freitas]: Fazer aquela edição foi muito difícil, e depois eles ainda disseram que não teve saída porque tinha mulher na capa.

[Julia Facca]: Na última hora, os homens descumpriram o combinado e a edição foi publicada com apenas uma mulher na capa. Ela posava com uma das mãos no joelho e, com a outra, segurava um cigarro. Depois desse episódio, a situação se tornou insustentável para Maria Helena, que optou por deixar a publicação.

[Maria Helena de Freitas]: Dizer que era culpa deles? Sim, um pouco de culpa deles. Porque eles não queriam sair daquilo, não queriam vencer o próprio machismo.

[Julia Facca]: Mesmo diante desse cenário, Regina Bottari ficou no Babado por mais três edições, com o cargo de editora-chefe, título que conquistou porque ninguém mais queria assumir a função.

[Regina Bottari]: Não fez diferença nenhuma para mim. Foi só colocar o nome lá. Porque eles faziam tudo. Eu continuei só obedecendo o que eles faziam.

[Oscar Nucci]: A luta das mulheres nas páginas do Babado tem relação com o surgimento da imprensa lésbica, como lembra Caio Maia, pesquisador do jornalismo gay.

[Caio Maia]: A própria forma de organização da imprensa lésbica, como espaço separado, é para reconhecer isso: “Olha, se a gente continuar tentando cavar espaço lá, nunca vai funcionar do jeito que a gente quer”.

[Caio Maia]: A própria forma de organização da imprensa lésbica, como espaço separado, é para reconhecer isso: “Olha, se a gente continuar tentando cavar espaço lá, nunca vai funcionar do jeito que a gente quer”.

[Oscar Nucci]: As primeiras publicações unicamente lésbicas surgem apenas nos anos 80, 20 anos depois da criação do primeiro veículo gay, e crescem exponencialmente nos anos 90.

[Julia Facca]: De maneira semelhante, a experiência vivida pelas mulheres no Babado fez com que elas se organizassem politicamente e passassem a ocupar espaços de maior destaque. A partir da sua participação no grupo ativista LGBT Identidade, que reuniu ex-membros do Babado, Maria Helena criou o Mo.Le.Ca, do qual apenas mulheres homossexuais podiam participar.

[Maria Helena de Freitas]: No próprio Identidade eu comecei a conhecer outros grupos. Associações nacionais, grupos de São Paulo, lésbicas militantes do Brasil. Eles foram me convencendo a criar um grupo só de mulheres, ou pelo menos a ter um núcleo só de mulheres no Identidade. Até que, com outras mulheres do Identidade, nós acabamos formando o Mo.Le.Ca. E o Mo.Le.Ca estrito... para mulheres... foi bem legal.

[Oscar Nucci]: Para conferir o texto “As caminhoneiras” na íntegra e saber mais sobre o Babado, confira nosso site www.quebabadocampinas.com.br e também nosso Instagram @ quebabadocampinas